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quinta-feira, 31 de março de 2011

A Terra é azul e o autismo também

Infonet
31/03/2011

Artigo sobre o Dia Internacional de Conscientização do Autismo

Jorge Márcio
Imagem publicada - um pedaço de um quebra cabeças que traz um rosto de uma criança, que nos olha e interroga, com o texto abaixo, que é difundido no site da ONU, pelo World Autism Awaraness Day (Dia Mundial de Conscientização do Autismo), escrito com letras na cor laranja, trazendo o símbolo das Nações Unidas em azul, logo acima da frase. O quebra cabeças é muito utilizado para representar a heterogeneidade e os diferentes modos de ser e estar autista. (Foto David Rockind Design Kim Conger)

No dia 12 de abril de 1961, aos 27 anos de idade, Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano a ir ao espaço sideral, na nave Vostok 1, dando uma volta completa ao redor de nosso Planeta e nos legou uma das mais lindas frases: "a Terra é azul". Me lembro, então menino, da fascinação com a idéia poética de morar, viver e sobreviver em um mundo todo azul.

Essa cor à época nos fascinava com os "blue jeans" que representavam a nossa filiação ao modelo norte-americano de vestir e se comportar. Todos queríamos andar vestidos de azul. Garotos e garotas do twist e do Rock nos inspiravamos nas calças jeans Levi's ou Lee. E nossos heróis também as vestiam, desbotamente azuis, nas telas de cinema. Nos identificavámos projetivamente com a rebeldia, a vontade instituinte e potência de mudanças, a contracultura e o sonho de um mundo sem guerras e violências.

Hoje, às vésperas de mais uma data comemorativa e conscientizadora, estou retomando meu velho guarda-roupa. Irei reabilitar meus velhos jeans, minhas camisetas azuis e minhas jaquetas tingidas do mais legítimo índigo blues. Mas agora não é por mera cópia do modelo cultural de James Dean ou outros mitos cinematográficos. Irei me vestir de azul por uma causa muito mais viva em minha vida profissional e pessoal. Irei vestir o azul como forma de lembrar um grupo de pessoas que vivem com o autismo.

O autismo já me tocou pessoalmente há muitos anos, mas é preciso, nesse momento, relembrá-lo com uma atitude tão afirmativa como a que tomei no passado. É preciso que tomemos o azul como uma segunda pele, uma segunda camada de vida sobre nossos corpos. É a hora de tomada de consciência da existência de milhares de "rain man" no mundo.

São as pessoas que vivenciam os diferentes transtornos invasivos do desenvolvimento. São os que chamamos de autistas, desde sua conceituação por Leo Kanner em 1943, com sua aglutinação sob o manto diagnóstico de um grupo de crianças com distúrbios psiquiátricos. Este psiquiatra infantil as caracterizava como "portadoras de": "um isolamento extremo desde o início da vida e um desejo obsessivo pela preservação da mesmice".

Desde 2009, no dia 2 de abril é comemorado o Dia Internacional pela Conscientização sobre o Autismo (World Autism Awareness Day). Esta data foi proclamada em 18 de dezembro de 2007, quando a Assembléia Geral da ONU aprovou a resolução 62/139, apresentada pelo Estado do Qatar. Mas como promover essa consciência crítica?

Creio que deveríamos procurar o caminho de afloramento/aprofundamento dos nossos sentimentos provocados no contato com o sujeito com autismo, e digo isso a partir de minha própria vivência profissional. Mas nem todo mundo tem a experiência do acompanhar, cuidar e conviver com as estereotipias e os sintomas que afetam um autista. Porém, creio eu, que os filmes e documentários hoje em proliferação possam ser um bom meio de tomada de contato com a vida e os sentimentos que estes seres humanos provocam e vivenciam. Eu creio no possível efeito livre e crítico do cinema nos nossos inconscientes.

Um dos filmes recentes que recomendo é sobre Temple Grandin, que foi exibido pela HBO. O filme ficcional, mas quase documentário, ganhou prêmios, e se tornou um exemplo de rompimento de barreiras. Temple foi diagnosticada precocemente como autista, sua família, então, recebeu do modelo médico a indicação de sua institucionalização; depois, já na escola, foi chamada de gravador por repetir frases dos colegas. Mais tarde, em vida no campo, afeiçou-se pelas vacas e sua vida de confinamento a caminho do abate. Uma metáfora de vida autista em instituições do passado. Um isolamento institucional que até bem pouco era considerado o modo ideal de tratar os autistas.

Ela, após muitas lutas para ser menos excluída, com uma "máquina do abraço", ganhou espaço na universidade, atingiu o status de PhD em comportamento animal. Aos que não vêem sua possibilidade de inclusão escolar eu sugiro que assistamos sua história. Mas vestidos de jeans na alma, como uma experiência de identificação projetiva. Sugiro que nos coloquemos na pele de Temple. E que, vivenciando o próprio isolamento egóico, consigamos sair do egocentrismo e enfrentar o egoísmo dos que nos cerceiam e cercam, com máquinas que não abraçam, mas isolam, individualizam e, quase sempre, nos rotulam.

Em tempo, Temple Grandim tem uma indumentária quase sempre próxima do azul, pelo menos está sempre de jeans, e usa camisas listradas à moda texana. Por isso além de vestirmos os monumentos, as praças e as pontes de azul, estou convidando a todos e todas que nos coloquemos, coloridamente, azuis no dia 2 de abril. Mas, como já disse, é preciso que ele fique impregnado em nossas mentes e corações. É preciso que o azul do autismo esteja presente mais dias em nossos dias.

Nesse tempo de homogeneização e mesmice - dita era digital e idade mídia -, em nossos tão velozes, repetitivos, esteriotipados, consumidos, consumidores e distanciados cotidianos, o termo autismo acaba por ser mal utilizado em campos como a macropolítica e a economia, sempre significando um reducionismo de seu espectro ao isolamento egóico.

Relembro que já disse um dia, em outubro de 2007: "Precisamos, dentro de uma visão construcionista e pós-estruturalista, resignificar o lugar de sujeito para as pessoas com autismos, saindo da visão objetal e medicalizada de sua condição e existência, acreditando e exercitando o princípio de que eles, assim como nós, têm muito mais possibilidades do que limitações, para além de toda a complexidade de suas vivências, transtornos ou sofrimentos".

Vamos vestir azul no dia 2 de abril. E quem sabe a sorte de muitos outros poderá ser mudada. Eu vesti azul e a minha sorte já mudou. Se o astronauta viu a Terra vestida de Azul, e se nos últimos dias de Lua Cheia, tão próxima de nós, os poetas e cantores puderam declamar e cantar em tom de "blues", se os artistas como Picasso, um dia, tiveram sua "fase azul", que tal reafirmarmos que o autismo é azul. Mas isso só acontece e acontecerá: se nossos desejos de uma outra vida possível também forem intensificados em um devir azul como nosso planeta ainda em convulsão e tremores...a Terra é azul, e o autismo também! vamos cuidar, com muita suavidade, para que continuem assim.

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